Por muito tempo fui uma pessoa totalmente voltada para a ideia primária de que os sonhos são o grande motor da vida. Todos nós temos sonhos, pequenos, médios, grandes, mas a verdade é que independente do tamanho do seu sonho a ideia central de viver não está em apenas alcança-lo. Corporativizamos a nossa vida e criamos a lógica de que sonhos precisam ser concluídos para termos não só o prazer da conquista mas também a sensação de dever cumprido na vida, tal como uma tarefa a ser finalizada, aquela demanda importante, o grande projeto ou aquele favor do seu chefe, e com isso não percebemos que passou semanas, meses e anos do nosso precioso tempo de viver.
Em um anime chamado Sousou no Frieren, conta uma história de uma maga-elfa que tem lá seus 1000 anos, onde sai em uma aventura com mais 3 companheiros, em busca de matar o grande Rei Demônio que atordoava aquela região. Nessa jornada, Frieren e seus companheiros, não só conseguem derrotar o Rei, mas conseguem trazer a paz naquele lugar, eles são eternizados, criam-se estatuas sobre eles e até um nome para o grupo, o “grupo dos heróis”.
Frieren, por ser imortal de “forma natural”, viveu inúmeras situações durante sua vida, viu seu povo ser dizimado, viu sua mestra humana morrer, derrotou inúmeros demônios poderosos, inclusive o Rei, e também assistiu os seus 3 amigos envelhecerem até morrerem. Acostumada com a ideia de assistir o ciclo do fim diante de seus olhos, ela não cultivava mais sentimentos românticos por viver muito tempo, não vendo sentido de ter esse tipo de relação sabendo que outro não viverá o mesmo tempo que ela.
Coincidentemente, assisti esse anime em um momento muito oportuno, onde estava me questionando diariamente do que eu deveria fazer já que concluí todos os meus sonhos. Criaria novos? Até quando ficamos nessa maquina de caça-níquel de sonhos a serem concluídos? Em uma de muitas sessões de terapia me questionava fielmente que eu não tinha mais sonhos a serem conquistados, pois muito dos meus sonhos anteriores já tinha sido concluído. Muito também do lugar de onde saí, normalmente nós criamos sonhos/desejos sobre aquilo que nos faltou durante a infância, felizmente a minha familia era muito bem estabelecida quando era mais novo, tinhamos casa própria, carro, viajamos, mas faltavam em outros pontos, então nunca fui de idealizar posse de bens materiais como carro ou casa, mas criava sonhos que eram da realização humana, como dimensões afetivas, relacional, identitária, profissional e até intelectual.
Com passar do tempo, meu total foco de vida era conquistar cada um deles, me tornar uma pessoa mais amorosa, me permitir amar e ser amado, construir um laço familiar com alguém e com meus amigos, entender cada vez mais quem eu era e quem eu sou, me tornar profissionalmente quem eu teria orgulho de ser e me aprofundar mais em conhecimentos que me agregariam valor como ser humano. A cada etapa “concluída”, me sentia cada vez melhor, mas foi se criando uma lacuna e uma sensação de vazio, na tentativa de preencher esse espaço, comecei abraçar os sonhos do outro, trazendo assim comigo aquela sensação de um novo desafio, me mantendo vivo e com vontade de viver. Quando até o sonho do outro foi concluído, juntamente com o afastamento do próprio, voltei a sentir aquele vazio mais uma vez, trazendo assim o grande questionamento, o que eu deveria fazer agora?
Para Frieren, o seu grupo de amigos que ela criou durante a jornada contra o Rei Demônio, ficou muito mais tempo em sua cabeça, mesmo vivendo mais de mil anos, esses momentos a marcaram e muito. Um dos seus amigos, Eisen, fala que a relação que eles tiveram durou apenas 1 centésimo da vida dela mas foi o suficiente para muda-la. Essas memórias surgem durante o anime como pontos marcantes de toda sua vida, momentos onde ela se sentiu feliz, realizada e com a sensação de ter valido a pena, não apenas de situações grandiosas mas de momentos cotidianos, encontrando assim a felicidade nas pequenas coisas do dia-a-dia que ela teve com eles. Nesse momento de reflexão das memórias, ela encontra um profundo arrependimento que seria não ter conhecido profundamente seus amigos, onde ficou anos com eles, e quando o fim chegou, percebeu que nunca tinha os conhecido de verdade.
Antes de morrer, Heiter que era um de seus amigos, lhe faz um pedido, que ela fosse a mestra de uma menina órfã refugiada que ele cuidava. Mesmo relutante com essa ideia, sabendo que ela teria que assistir o fim de um ciclo mais uma vez, ela aceitou por ser o último pedido de seu amigo. Com isso, inicia uma nova jornada onde passa a ensinar a menina. Fern, nome dessa menina, por sua vez ensina e muito a sua mestra sobre a finitude, valor das conexões humanas e apreço pelo tempo e pelo mundo. Frieren com medo do arrependimento resolve conhecer profundamente sua discipula e abraçar essa jornada mais uma vez, ficando feliz com cada pequena vitória, cada momento, assistindo-a crescer, evoluir como maga, progredir em suas relações afetivas e observar como ela aproveitava a finitiude da vida.
Tal como Frieren, relutante com a ideia de ter que iniciar um novo ciclo mais uma vez, aceitei a ideia de começar de novo em outro lugar, percebendo assim que precisava reaprender e iniciar uma nova jornada onde já sabia que existira um fim, seja ele qual for. Com o tempo fui criando novas amizades, aprendendo novos hobbies, ouvindo novas histórias, aproveitando oportunidades únicas da vida e me abrindo para um novo amor. Passei a me vulnerabilizar para permitir enxergar o que de fato existia além do fim, e ao final descobrir que o que acontece depois que acaba é o absoluto nada. Saber que o fim existe é o que garante a jornada de acontecer, o presente é a única certeza que temos em nossas mãos, e que o grande motor da vida é o tempo, aproveitá-lo intensamente com as pessoas que amamos é talvez a mais bela engenharia de viver.
A vida não precisa de um grande objetivo, nem sequer de um sonho grandioso. Estamos aqui simplesmente para nos relacionar, nos conhecer, aproveitar cada milesimo do nosso maior bem, o tempo. Uma vez ouvi que a beleza da flor só existe porque sabemos que, um dia, ela irá morrer.
A vida toda é um aprender a morrer.